quinta-feira, 24 de abril de 2014

Opositores formam coalizão na Argentina

Objetivo é apresentar uma candidatura única à Presidência do país no ano que vem
DE BUENOS AIRES
Parte da fragmentada oposição argentina decidiu se unir de olho nas eleições presidenciais de 2015.
A UCR (União Cívica Radical) e o Partido Socialista, junto com outras legendas e a já existente coligação Unem (Coalizão Cívica e Projeto Sul, entre outros), criaram uma grande coalizão, a Frente Ampla-Unem.
Cinco políticos que já se declararam no páreo para a sucessão de Cristina Kirchner integram a aliança. São eles: a deputada Elisa Carrió (Coalizão Cívica), os senadores Fernando Pino Solanas (Projeto Sul) e Ernesto Sanz (UCR) e os ex-governadores e atualmente deputados Hermes Binner (Partido Socialista) e Julio Cobos (UCR).
Na última pesquisa eleitoral, divulgada no dia 13, Binner aparece com 9% das intenções de voto; Cobos, com 8%, e Carrió, com 6%.
Em primeiro lugar, com 25%, está o dissidente governista Sergio Massa (Frente Renovadora); em segundo, Daniel Scioli, aliado da presidente (21%), e em terceiro Mauricio Macri (PRO), prefeito de Buenos Aires, com 16%.
No lançamento da Frente Ampla, anteontem à noite, em Buenos Aires, foi apresentado um documento no qual a aliança promete dialogar, respeitar as regras do jogo democrático e não roubar.
A aliança também prometeu que a escolha do candidato à Casa Rosada será por meio de eleições primárias.
"Nós, partidos e dirigentes que subscrevemos este documento, manifestamos nossa forte vontade de fazer uma coalizão nacional que brinde à Argentina uma alternativa de governo", diz o texto.
Uma das apostas da coalizão é que a sociedade argentina está cansada do peronismo no poder, depois de um mandato de Néstor Kirchner e de dois de Cristina.
Fundado pelo ex-presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), o peronismo é um movimento político populista que se apoia, entre outros pontos, no sindicalismo, na intervenção estatal na economia e nos slogans que defendem justiça social. Uma de suas principais características é a figura de um líder.
"Não acredito que a sociedade argentina esteja envolvida nessa disputa de peronistas e antiperonistas. Essa não é a preocupação. As pessoas querem saber é qual político pode ou não solucionar os problemas do país", disse à Folha o analista político Hugo Haime.
Para Haime, era natural a união da centro-esquerda e foi "inteligente" a criação da Frente Ampla-Unem. "Mas há um problema: para algum dos candidatos deles conseguir crescer é preciso que Massa ou Macri percam votos, e são dois candidatos muito fortes."
A Frente Ampla não descarta uma aliança com Macri, que além de prefeito de Buenos Aires é criador do PRO (Proposta Republicana) e ex-presidente do popular clube de futebol Boca Juniors. Mas, até agora, ele não demonstrou interesse.
"Se Macri se somar a essa coalizão, ela também poderá perder votos, já que muitos eleitores não querem votar na direita", avalia Haime. (LM). Folha, 24.04.2014

terça-feira, 22 de abril de 2014

CLÓVIS ROSSI: A selvageria como regra

O Brasil e a América Latina caminham para a completa perda das regras de convivência civilizada
Dias atrás, meu genro, distraído, esqueceu aberto o portão da garagem. O vizinho da frente me ligou para avisar (moro pertinho e, portanto, podia tomar as providências necessárias para não deixar a casa desguarnecida).
O que há nesse episódio banal e nessa atitude normal que se tornam dignos de menção? Simples: o Brasil está perdendo crescentemente a capacidade de, sem coerção, conviver civilizadamente com a vida e a propriedade alheias.
O caso da Bahia, durante e depois da greve dos policiais militares, é apenas o mais recente exemplo da selvageria que se foi instalando pouco a pouco no país. Durante a greve, decuplicou o número de homicídios, passando de já insuportáveis cinco diários para 52.
Qual a leitura a fazer? As pessoas deixam de matar não porque é errado fazê-lo do ponto de vista da moral e da lei, mas porque há o risco de serem apanhados pela polícia, se e quando ela está em plena atividade. Some a polícia da rua e a criminalidade dispara imediatamente, o que não é exclusividade da Bahia, como já se viu em anteriores episódios de paralisação policial.
Aliás, até quando a polícia está nas ruas, o desrespeito a regras primárias de convivência é absurdo, abusivo.
Virou moda, por exemplo, queimar ônibus por qualquer pretexto e até na falta deles. Pouco importa que os prejudicados não sejam policiais ou autoridades, mas os usuários do transporte coletivo, inexoravelmente privados de veículos que já circulam precariamente quando não há a queima.
O vizinho de minha filha não precisou da presença da polícia no quarteirão para agir civilizadamente. Mas, se a moda do desrespeito continuar se espraiando, chegará o dia em que alguém como ele, vendo o portão aberto e sem polícia perto, invadirá a casa e levará o que puder.
Em grau muito mais grave, foi o que se fez na Bahia durante a greve. O portão estava aberto, não havia polícia, então saiamos para matar, deve ter pensado um pedaço marginal da população.
O diabo é que esse pedaço, no país todo, na América Latina toda, está aumentando. Países latino-americanos ocupam os primeiros cinco lugares no ranking mundial de homicídios, segundo a ONU. Pela ordem: Honduras, Venezuela, Belize, El Salvador e Guatemala.
A Argentina, com um dos mais baixos índices de homicídios, conhece uma onda de linchamentos, que não passa da perda do freio moral e da convivência civilizada.
No Rio de Janeiro, números do Ins­ti­tu­to de Se­gu­rança Pú­bli­ca citados ontem por "El País" são inacreditáveis: nos últimos oito anos, foram 43.165 mortes violentas, o que dá 500 ao mês, justamente no período em que se disseminaram as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Sem contar os mais de 38 mil des­apa­re­ci­dos nem as mais de 31 mil ten­ta­ti­vas de ho­mi­cídio.
Se esses números se dão em uma época supostamente pacificadora, tremo de medo de imaginar como seriam em outros momentos. O país e o subcontinente vivem a era da selvageria, e as autoridades parecem impotentes. Ou incompetentes?crossi@uol.com.br
Folha, 22.04.2014.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Caos, chavismo e uma telenovela

Caracas, Venezuela
Como escritor em Caracas nestes tempos caóticos, vivo em dois mundos diferentes. Durante o dia, escrevo roteiros para uma telenovela, uma coprodução mexicano-venezuelana para a Telemundo. À noite, redijo comentários políticos, principalmente para o "Tal Cual", um dos poucos jornais oposicionistas que restaram na Venezuela. Levei 30 anos para compreender que as telenovelas são uma metáfora dramatizada do populismo latino-americano. Essas atrações lidam não tanto com o amor não correspondido, e mais com mitos de redenção social tão imortais quanto o de Evita Perón.
O tema mais frequente prescreve a redistribuição de riqueza entre os pobres, com pouca consideração sobre como essa riqueza é criada, o que explica muito sobre a história recente da Venezuela e seu estilo peculiar de socialismo, conhecido como chavismo. Muitos populistas demagógicos latino-americanos propagaram desde 1930 essas "soluções" inspiradas em Robin Hood para a pobreza e as injustiças.
Eu queria escrever uma história diferente, a história de uma moça, uma empreendedora, que ascende da pobreza para a prosperidade por meio da inovação, da astúcia, de um pouco de capital inicial e de muito esforço. O fato de a América Latina abrigar 17% das start-ups do mundo tornou a ideia palatável para os produtores.
No início de janeiro, nossa produção se cruzou com uma tragédia verdadeira. Mónica Spear, 29, atriz e modelo que era a candidata mais cotada para o papel principal, de Nora, e seu marido, um britânico, foram mortos a tiros em um trecho ermo de uma rodovia litorânea. Foi o tipo de assassinato chocante que normalmente nem é noticiado em um dos países com mais homicídios na Terra, mas desta vez a imprensa não poderia ignorar uma vítima que era uma ex-miss Venezuela, baleada diante da filha de cinco anos, que ficou ferida na perna, mas sobreviveu.
Nas gravações de "Nora", México, Colômbia e Venezuela, três países infestados pela violência endêmica, estão representados no elenco e na equipe de produção. Durante um intervalo, escutei uma espirituosa atriz mexicana parafraseando a frase de abertura de "Anna Karenina", de Leon Tolstói: "Todos os países pacíficos são iguais, mas cada país latino-americano violento é violento à sua maneira". Na Venezuela, a violência é provocada por gangues que eram, originalmente, organizadas ao redor de pequenos pontos do tráfico de drogas nas favelas. Um desses bandos assassinou Mónica Spear.
Muitas dessas gangues foram cooptadas pelo governo chavista e receberam um nome inócuo: coletivos, uma palavra enganosa com subtexto progressista de solidariedade comunitária.
Na realidade, os coletivos são agora temidas forças paramilitares que, usando motocicletas, perseguem manifestantes de rua e são responsáveis por muitas das mortes durante os recentes protestos. Essa violência parece distante dos luminosos estúdios com ar-condicionado onde nossa novela é produzida, mas a escassez de produtos essenciais, inexplicável em um opulento petroestado, afeta a todos nós.
De vez em quando, a gravação é interrompida porque um membro do elenco ou da produção recebeu uma mensagem de texto avisando que algumas mercadorias estão disponíveis em um supermercado das imediações. O estúdio se esvazia antes que o estoque racionado de óleo de cozinha, papel higiênico, leite ou farinha de milho acabe.
Muitos atores venezuelanos de novela também têm um trabalho extra à noite no teatro, mas os sequestros e assaltos desenfreados provocaram um toque de recolher melancólico, autoimposto, na vida noturna de Caracas, limitando aquilo que os atores podem fazer fora do estúdio.
Num momento em que grandes teatros começam a fechar as portas, alguns atores decidiram ler seus papéis em praças públicas. As falas provêm de "Jazmines en el Lídice", premiada peça de Karin Valecillos, uma das autoras de "Nora". Ela fundamentou a obra nos depoimentos de 44 mães venezuelanas que perderam filhos para a violência dos criminosos.
Escrevo um artigo opinativo semanalmente para o "Tal Cual", corajoso tabloide que Teodoro Petkoff fundou em 2000, no começo da era Chávez. Petkoff, 82, é um ex-comandante guerrilheiro venezuelano que repetidamente escapou de modo espetacular de prisões nos anos 1960 e, por fim, deixou o Partido Comunista para escrever denúncias vigorosas da ocupação soviética da Tchecolováquia e do stalinismo.
Petkoff, que tem ascendência búlgara, se tornou um ícone para revisionistas marxistas latino-americanos quando ele e um pequeno grupo de ex-jovens comunistas fundaram um novo partido em 1971. Seu ativismo político terminou quase 30 anos depois, quando deixou o partido em protesto contra a decisão de designar Hugo Chávez como seu candidato na eleição presidencial de 1998. Ele, então, iniciou uma nova carreira -aos 68 anos- como editor fundador do "Tal Cual".
Apesar de sua pequena circulação, o "Tal Cual" rapidamente se tornou o mais influente jornal opinativo da Venezuela. Divulga o estilo pessoal de textos social-democratas e centro-esquerdistas de Petkoff, bem como vozes mais conservadoras da oposição democrata. Petkoff combate incansavelmente o regime de Chávez e de seu sucessor.
Em decorrência da última escaramuça, ele pode pegar quatro anos de prisão e multas de milhões de dólares se for considerado culpado numa ação por difamação movida por Diosdado Cabello, o segundo homem mais poderoso da Venezuela.
Petkoff admitiu em um editorial que o "Tal Cual" repetiu um erro veiculado por um site noticioso, mas Cabello não ficou satisfeito e levou o caso adiante.
É inspirador observar o confronto do velho com Cabello. Ele já se prepara para colocar seu conteúdo na web caso o governo cumpra suas ameaças de silenciar o "Tal Cual" cortando seu suprimento de papel. "Passaremos a sair on-line", disse ele à equipe da redação. Em uma recente entrevista de rádio, ele disse: "Não rompi com o comunismo no século passado para terminar endossando qualquer outra forma de tirania neste."
Enquanto escrevo isto, posso ouvir a rotina noturna das cápsulas de gás lacrimogêneo e dos projéteis de chumbo atirados pelas forças antidistúrbios no bairro de Chacao, perto daqui. Tudo acontece na escuridão, quando a Guarda Nacional invariavelmente impõe um blecaute ao reduto dos manifestantes jovens e inflamados, antes do avanço dos tanques blindados.
Eu me pergunto como Nora se sairia como empreendedora na Venezuela real, um país que está em 175° lugar no índice de liberdade econômica, um indicador internacional, acima apenas da Coreia do Norte, de Cuba e do Zimbábue. Minha aposta é que ela iria para as ruas e se juntaria aos manifestantes.
Ibsen Martínez é dramaturgo e romancista. Seu último livro é "Simpatía por King Kong".
Envie comentários para intelligence@nytimes.com
NYT, 08.04.2013